É Galiza uma nação? Se o é, será pola língua, pelas tradições e o sangue — ou pola vontade livre de quem decide sê-lo? Ou talvez por ambas? No caso galego, o nacionalismo identitário virou regionalismo, e o democrático… independentismo.


Imagem que ilustra o artigo: Carte ethnographique de l’Europe. Cartógrafo: Juozas Gabrys-Paršaitis (1880–1951). Editora: Librairie Centrale des Nationalités

Durante uma caminhada pela montanha, um grupo de amigos topou um esquilo agarrado ao tronco de uma árvore. Tentando vê-lo melhor, um deles começou a arrodeá-lo, só que o animal era muito rápido. O homem deu várias voltas ao redor, mas nunca conseguiu ver-lhe as costas. Alguns disseram que, de facto, ele não o tinha arrodeado, porque não conseguira passar-lhe por trás, mas outros defendiam que sim, porque ele deravoltas à árvore. Quem tinha razão? Claramente, a pergunta não tem resposta com a informação disponível. Antes é preciso chegar a um acordo sobre o que significa, neste caso, “arrodear” uma coisa. O problema foi exposto pelo pensador pragmatista William James, e resume a maioria dos conflitos intermináveis da filosofia. A realidade sensível só pode ser compreendida por meio de conceitos, e isto significa que uma mesma proposição pode ser verdadeira ou falsa consoante as definições que estejamos a assumir.

Neste ensaio tratamos uma questão com a mesma problemática: é a Galiza uma nação? As discussões sobre o que é ou não uma nação ocupam um lugar muito destacado no espaço público atual, devido às consequências culturais das grandes vagas migratórias que têm chegado ao continente europeu. No caso espanhol, a diversidade dos territórios que formam o Estado fez com que tal assunto seja um problema ainda mais antigo e relevante. Se imaginamos as posições sobre isto como o grupo de amigos de antes, veremos que, na história recente do pensamento político, existem também duas grandes correntes.

A primeira é a chamada essencialista. Para eles, as nações são algo natural, prévio ao Estado, independente da vontade ou da consciência daqueles que as compõem — exemplos clássicos são Hegel e Fichte. Os seus critérios para assinalar uma nação são a língua, a religião, as tradições, as estruturas familiares, a arte folclórica, a música, a terra e, a miúde, também a genética. Isto significa que as nações têm pouco espaço para a mudança ou a convivência interna com outras culturas, pois a perda daqueles elementos que os nacionalistas escolhem como distintivos significa a sua extinção. Esta abordagem está muito presente na Europa, dada a longa história, variedade e enraizamento das culturas que nela há.

Uma outra tendência é a voluntarista. Esta é muito própria das repúblicas americanas e daqueles Estados que não possuem uma única tradição etnocultural distintiva. Bebe de noções como o contrato social de Rousseau ou o plebiscito diário de Renan, e aposta por uma visão da nação como uma associação de cidadãos livres que decidem construir uma comunidade política e submeter-se a normas comuns. Sem tal comunidade, sem um Estado próprio, a nação simplesmente não existe. Há culturas, povos e estruturas sociais, mas não nações.

Nenhum nacionalismo conseguiu construir um Estado duradouro apenas sobre uma destas visões. As culturas não são blocos homogéneos, fechados e imutáveis. Os elementos que habitualmente servem aos essencialistas para construir a ideia de nação costumam ser internamente parciais e variáveis, e externamente não exclusivos. Por isso, a língua materna —de todas elas, a que parece mais objetivável— costuma erguer-se em símbolo da suposta unidade e diferenciação.

Da mesma forma, mesmo nos Estados mais plurais — Suíça, EUA, Índia… — existe a necessidade de incluir determinados elementos etnoculturais no discurso nacional. O Estado precisa de sustentar uma identidade comum para legitimar as leis diante dos cidadãos, promover a convivência, evitar a secessão de territórios ou convencer as pessoas a ir à guerra. Todas as nações que conhecemos hoje resultam de uma mistura das duas perspectivas, e o equilíbrio entre ambas depende do contexto e das preferências políticas.

Então, qual é a resposta à nossa pergunta? Pode-se dizer que os galegos são uma nação? Como no dilema do esquilo, é possível defender que sim ou que não. Para a maioria, a resposta é que sim em termos puramente culturais e identitários, mas não políticos. Este é o caso do piñeirismo, uma tendência surgida no contexto de repressão cultural da ditadura franquista, pela mão do intelectual Ramón Piñeiro. As suas ideias inspiraram a concepção da Galiza que viria a ser consagrada no Estatuto de Autonomia. Hoje é defendida pelos ramos galeguistas do Partido Popular e do PSOE, assim como por outras formações minoritárias, com o nome genérico de galeguismo.

Segundo esta visão, os galegos são um povo diferenciável que necessita de certas instituições de autogoverno, mas não podem aspirar à soberania plena. Esta perspectiva é hoje absolutamente hegemónica e encaixa melhor com a ideia de região do que com um nacionalismo essencialista, apesar do seu foco na cultura. Poderíamos considerá-la como uma forma adaptada do nacionalismo espanhol, porque nega à Galiza qualquer aspiração política separada da Espanha.

Para outra parte da sociedade, minoritária, mas muito presente em forças políticas destacadas como o BNG e nas instituições académicas e culturais, a interpretação é outra. Partindo também de uma concepção etnocultural da Galiza, consideram que esta realidade diferencial é precisamente o que legitima a necessidade de soberania. Sem os aparelhos de governo de um Estado, quer independente, quer federado com a Espanha, a nação galega poderia desaparecer por causa da inércia histórica da repressão cultural, do centralismo e da falta de promoção.

Não estamos a falar de um nacionalismo puramente essencialista. Embora a sua principal bandeira seja a língua galega, tal tendência repudia o tradicionalismo e não mostra preocupação pelas mudanças sociais que traz a imigração. Sem chegar a um voluntarismo ingénuo, aposta pelas transformações culturais, pela hibridação e pela integração das correntes globais na ideia da nação galega. Trata-se de um nacionalismo semelhante aos que têm sido hegemónicos nos países da Europa Ocidental até hoje, promotores de sociedades plurais e abertas, unidas por alguns traços culturais mais simbólicos do que obrigatórios.

Os dois casos apresentados coincidem na sua visão da Galiza como uma sociedade com personalidade própria, mesmo diferindo na sua interpretação. Visões dela como indistinta de outras regiões espanholas são incomuns e muito pouco populares. O facto de a visão regionalizada ser maioritária não deve levar-nos a engano, pois justamente isto é testemunho da incapacidade histórica do Estado para quebrar a diferenciação cultural, como em boa medida aconteceu nas Astúrias, em Leão ou em Aragão. Nem o franquismo, nem forças marcadamente centralistas como VOX conseguiram fugir disso e adaptaram as suas mensagens — em maior ou menor medida — ao contexto específico desta sociedade. Ou seja, a identidade galega é tão forte que tem a sua própria versão do nacionalismo espanhol.

No entanto, este foco na cultura como base da nação fica interrogado por uma outra realidade ao sul da Galiza. O que acontece com Portugal? A inegável ligação histórica das duas beiras do rio Minho torna a sua escassa presença nestes discursos na atualidade tão surpreendente quanto insólita. O relacionamento do nacionalismo galego com o país luso pode ser qualificado de instrumentalização, no melhor dos casos, e de um paródico imperialismo, no pior. Portugal aparece ocasionalmente como uma referência histórica dos domínios do antigo Reino da Galiza e também como uma forma de legitimação abstrata da utilidade da língua galega. O desenvolvimento da euro-região Galiza–Norte de Portugal no marco europeu também fez avivar, em grupos periféricos do nacionalismo galego, a ideia de que é possível dividir o país vizinho em favor de uma Galiza independente e ampliada. Uma estratégia tanto inútil como contraproducente.

Na segunda parte deste artigo aprofundaremos essa questão, oferecendo uma perspetiva diametralmente oposta do relacionamento entre a Galiza e Portugal. Faremos um percurso histórico pela perceção portuguesa dos seus vizinhos do norte e pelo enquadramento do irmanamento entre os dois territórios numa perspetiva nacionalista mais moderna e mais apegada à realidade.

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